29 abril 2008

Entre Julho e Novembro

3.


É onde não respiras que a morte me descobre
e pretende apertar-me num casaco de pedra
É onde não respiras Mas rebenta a revolta
com o curto-circuito de uma cadeira eléctrica

É onde não respiras E vou roendo as trevas
à procura da pista de mais um europorto
e daquelas cidades onde só nos conhece
o amor que trazemos entranhado no corpo

Esta noite é tão negra que seria uma estrada
se não houvesse a esperança de aves e aviões
Ou melhor a promessa de uma hora inexacta
Ou melhor a certeza de fugirmos os dois

David Mourão-Ferreira, Do Tempo ao Coração

28 abril 2008

Travessias



Registo em silêncios o itinerário da longa viagem
que inevitavelmente terei de fazer
por entre equívocos e ruas cinzentas

pressinto que se aproxima uma despedida
uma porta entreaberta na penumbra da casa
uma respiração lenta que anuncia a manhã

todos os abismos me chegam como vozes dispersas
desejos de eternidade na ponta dos dedos
a vibração do mar que nos leva para longe

nem sempre chegamos a tempo de salvar alguém
que nos habita o peito
e nem sempre as lágrimas preenchem o vazio dentro de nós
ou o amor nos leva as sombras

Fotografia de Todd McDonald

16 abril 2008

Diálogos mudos



3.
Os nossos corpos respiram intensamente
coroando de luz todos os gestos
todas as marcas que deixas gravadas na minha pele
dia após dia

anoitecemos lentamente
com um cansaço sereno nas pontas dos dedos
renunciamos ao mundo que nos engole
e só encontramos refúgio na subtil desilusão do crepúsculo

temos silêncios nas mãos e o estremecer do coração
a terna escuridão das nossas próprias palavras

temos a ingenuidade deste amor
um sorriso fechado em dias nublados
a tranquilidade lenta com que te aproximas do abismo
aproximamos
diálogos mudos ou jardins distantes

Fotografia de Hugo Gomes

14 abril 2008

A cadência do coração


1.
De todas as promessas feitas
fica-nos na boca o sabor leve
de um dia as cumprirmos
como o beijo pelo qual esperámos em noites de insónia
e que guardámos docemente no peito

sonhamos com cidades sombrias
no silêncio distante do futuro
para onde possamos fugir quando tudo se desmorona

acordamos e adormecemos na neblina espessa destes dias
mãos geladas o teu corpo na penumbra

construimos listas e mapas
vastas cartografias do tempo
por onde os nossos gestos não passam

esquecemos o que fez de nós murmúrios
paisagens abandonadas vestígios de paixão

acordamos uma e outra vez
no incêndio lento do amanhecer
sem saber ainda o que a luz fará de nós


2.
Não sabemos por vezes o que a luz fará de nós
quando o dia começa sem aviso
e nos acorda para o frágil passar das horas

temos (nesses momentos) a certeza
de nenhuma solidão nos poder devastar novamente
enquanto as minhas lágrimas se perdem na pele do teu ombro

esperamos pacientemente pelo anoitecer
com suas vozes surdas fumo dos cigarros
fragmentos de uma memória mutilada
o ruído da morte que não olhamos nos olhos

nesses momentos escutamos a cadência do coração
batendo do meu peito para o teu
no espaço restrito deste amor
onde se esconde a sombra da noite
e a intensa respiração dos nossos corpos

13 abril 2008

Fatalidades

Será assim tão terrível o passar das horas
esperar num vão de escada assombrado
pelo teu regresso

sem tabaco sem sonhos
consumida pela fatalidade de não ter palavras quando te aproximas
e de nem sempre os silêncios dizerem tudo o que se sente

esperar envolta em sombras medos
tantos anos de solidão à flor da pele

e por fim
abandonar-me à mudez da tua ausência

10 abril 2008

Melancolia

O homem que existiu


II.
A melancolia é uma questão de tempo,
disse-me o homem. Era um homem que existia,
normal como os que existem.
Daqueles que não
costumam vir nos poemas
porque não
são centros de metáfora ou de revolução.
Porque não
gritam nunca.
Porque não
dizem não.


Hoje sei.
A melancolia é uma questão de falta
de tempo.


Filipa Leal, O problema de ser norte

Cidades esquecidas

Fotografia de Alexei Gourianov

09 abril 2008

Violência do silêncio

Como se de uma morte se tratasse
atravessamos dia a dia o vazio ruidoso da cidade
seguimos os relógios e as marés
melancolia que nos habita por dentro

nas manhãs mais negras
fechamos os olhos e adormecemos à beira do abismo
como se de uma morte se tratasse
com a voz da noite na memória

nem sempre chegamos a tempo
demasiado sós a enfrentar o vento
ou a nossa cegueira de todas as horas
nem sempre sabemos que o momento passou

tememos a escuridão e a loucura
o amor
e a súbita violência do silêncio

Nós e as palavras

Dúvida

Sabemos que as palavras
nos protegem do mundo.
Mas quem nos protege
das palavras?


José Mário Silva, Nuvens & Labirintos

07 abril 2008

Dreaming...



Just let the blood run red
cause I can´t feel anymore
Kyoto was a dream

Fotografia de Alexei Gourianov




02 abril 2008

Solidão




E, de repente, uma absurda solidão.
Fotografia de Sandra Ferrás