21 junho 2009

Marcha

10ª Marcha do Orgulho LGBT, Lisboa, 2009

Afinal não eramos assim tão poucos.
E, de qualquer maneira, só fez falta quem lá esteve :)

11 junho 2009

I'm miles from where you are

Snow Patrol & Martha Wainwright
Set The Fire To The Third Bar

I find the map and draw a straight line
Over rivers, farms, and state lines
The distance from 'A' to where you'd be
It's only finger-lengths that I see
I touch the place where I'd find your face
My finger increases of distant dark places

I hang my coat up in the first bar
There is no peace that I've found so far
The laughter penetrates my silence
As drunken men find flaws in science

Their words mostly noises
Ghosts with just voices
Your words in my memory
Are like music to me

I'm miles from where you are,
I lay down on the cold ground
I, I pray that something picks me up
And sets me down in your warm arms

After I have travelled so far
We'd set the fire to the third bar
We'd share each other like an island
Until exhausted, close our eyelids
And dreaming, pick up from
The last place we left off
Your soft skin is weeping
A joy you can't keep in

I'm miles from where you are,
I lay down on the cold ground
And I, I pray that something picks me up
and sets me down in your warm arms

I'm miles from where you are,
I lay down on the cold ground
and I, I pray that something picks me up
and sets me down in your warm arms

Medo de dormir

"Meto os dedos no interior da massa negra do seu cabelo crespo e rebelde como toda a sua natureza, e desencanto os seus sorrisos ao compasso da música. Os mesu dedos são também pássaros entre folhagem de ébano profundo.
O meu pé busca o seu pé no meio deste oceano, em que se converteu a nossa cama. Uma cama em que não se fala; uma cama em que, sem outros trâmites, apenas se faz amor; uma cama em que o seu gelado silêncio e o seu formoso rosto, voltado para a parede, me transformam em náufrago. Num puro papel molhado. Num puro objecto à mercê do vaivém das marés.
(...)
Tenho medo de dormir. Medo do que possa suceder quando ultrapassar o véu que separa os dois mundos em que se converteu a minha vida.
Devagar, muito devagarinho, eu sumo-me na agonia da sua respiração. Quero entrar no seu "tempo", fundir-me com o seu arrítmico crepitar de toros húmidos que se negam a arder. Quem me dera dormir no seu sono para escapar do meu...
Fecho os olhos. Fecho os olhos. Fecho os olhos?"

María Elena Cruz Varela, A vingança de Joana d'Arc

05 junho 2009

Chasing Cars
Snow Patrol


We'll do it all,
Everything,
On our own.
We don't need
Anything
Or anyone.

If I lay here,
If I just lay here,
Would you lay with me and just forget the world?

I don't quite know
How to say
How I feel.
Those three words
Are said too much.
They're not enough.

If I lay here,
If I just lay here,
Would you lay with me and just forget the world?
Forget what we're told
Before we get too old.
Show me a garden that's bursting into life.

Let's waste time
Chasing cars
Around our heads.
I need your grace
To remind me
to find my own.

If I lay here,
If I just lay here,
Would you lay with me and just forget the world?
Forget what we're told
Before we get too old.
Show me a garden that's bursting into life.All that I am,
All that I ever was
Is here in your perfect eyes, they're all I can see.
I don't know where,
Confused about how as well,
Just know that these things will never change for us at all.

If I lay here,
If I just lay here,
Would you lay with me and just forget the world?

11 maio 2009

Viagens



"O pó guarda a memória dos passos, desafia a brevidade da areia lavada pela asa do mar e pelo vento. A sombra das figueiras denuncia o sol, como um ferro quente na terra. Silêncio e secura: a lâmina da sede. Nem a hortelã nos amacia a aspereza da língua. As sílabas do levante traduzidas pelo sul. O pó é uma ressonância: albúm encarquilhado pela saudade. E o futuro também não é para aqui chamado. Por favor.


(...)


Logo vais ter as mãos suspensas no luar: a memória da tarde. Sem dares por isso, as constelações começam a furar o firmamento, à medida que o azul envelhece e se decanta sobre o mar. Primeiro, ainda verás o gado recolher cabisbaixo, a procissão rural das bestas, sobrevoada pelas aves recortadas na distância. Só as folhas, a tremura dos arbustos, denunciam a mudança: esse sopro breve que apaga o sol e atiça o perfume do levante."


Jorge Fallorca, Longe do Mundo

04 maio 2009

Apaixonei-me por esta música. Lembra-me de ti. Não sei porquê. Quer dizer, até sei, mas é um segredo só meu :)

"even if the world falls down today

You still got me to hold you up

And I would never let you down"

20 abril 2009

O algures

"Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que se passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos.
Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça viver uma vida ou um instante que poderiam ser seus; no lugar daquele homem agora poderia estar ele se tivesse parado no tempo muito tempo antes, ou se muito tempo antes numa encruzilhada em vez de tomar uma estrada tivesse tomado a oposta e ao cabo de uma longa volta viesse encontrar-se no lugar daquele homem naquela praça. Agora, daquele seu passado verdadeiro ou hipotético ele está excluído; não pode parar; tem de prosseguir até outra cidade onde o espera outro seu passado, ou algo que talvez tivesse sido um seu possível futuro e agora é o presente de outro qualquer. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.
- Viajas para reviver o teu passado? - era agora a pergunta do Kan, que também podia ser formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de Marco: - O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá."
Italo Calvino, As cidades invisíveis

17 abril 2009

Dias e noites

Por vezes não há dias nem noites
e tudo o que resta é um sorriso cravado dentro de nós
para nos acompanhar quando tudo se desmorona

Por vezes há horas maiores que a vida
horas fundas em que o bater do coração nos atordoa
como um prenúncio de morte

Por vezes os dias duram longas horas
sem que encontremos palavras ou gestos
e tudo o que possamos dar seja silêncio

Mas por vezes há palavras que chegam suavemente
sorrisos que nos levam para muito longe
e nos salvam de nós próprios

11 abril 2009

Lugares



"Evidentemente, comentou então o croata, era mais divertido, ou emocionante, matar devido a um ódio sólido e bom. Mais satisfatório e vulgar. Com o sangue ao rubro, uivando de júbilo enquanto se esfola a vítima.
- É como o álcool ou o sexo - acrescentou. - Acalmam muito, aliviam. Mas para homens que, como nós, passaram muito tempo a olhar para a mesma paisagem, esse alívio permanece longínquo. Uma navalha partida entre os escombros de uma casa, uma montanha despida atrás do arame farpado, o fundo de um quadro oara onde se viaja durante toda a vida... Lugares, lembre-se, de onde nunca mais se consegue voltar."

Arturo Pérez-Reverte, O Pintor de Batalhas

04 abril 2009

Melancolia 2

"Apenas Veneza era impossível de classificar: alterava-se, era fluida, fundia-se, ora tinha cor de jade e rosa, ora era cor de púrpura suave, quando o pôr do Sol ficava encoberto pelas nuvens. Veneza era o azul de um vestido da Virgem de Tintoretto, o castanho da madeira da Cruz num quadro de Carpaccio; Veneza era a escuridão dos olhos de Isabella, o cor-de-rosa pálido da sua boa, o preto das gôndolas e do sofrimento.
A nostalgia tem a ver com a idade; ele aceita isso, mas lamenta que só na sua mente consiga, agora, encontrar a variedade de cores da vida. Hoje, todo aquele esplendor, o brilho dos lábios, dos olhos e da paisagem, diminuiu e desapareceu na escuridão de um quarto, em Paris, numa noite chuvosa. E ele é um homem velho."

Lee Langley, Uma conversa no Quai Voltaire

02 abril 2009

Recordações

Li isto, e fiquei a pensar. Faz sentido, faz todo o sentido. São os pequenos momentos da vida que mais recordamos, escassos segundos que um dia mais tarde nos ficam presos na memória.
Sei que não vou esquecer o dia em que o meu avô morreu, , em que a minha mãe me foi buscar à escola e me deu a notícia; eu tinha seis anos, e durante meses não consegui adormecer com medo de morrer a dormir. Sei que não vou esquecer o momento em que, pela primeira vez, alguém me beijou, e eu soube que era tão certo e tão errado. O momento em que vi nos olhos da minha mãe que ela sabia que eu amava uma rapariga, e que por muito que ela só me deseje felicidade, eu lhe dei a maior desilusão da vida dela. O dia em que passeamos juntas, e te vi sorrir como nunca antes.
Não é por esses momentos que um dia alguém me vai recordar, se chegar sequer a recordar. É por ter sido boa ou má pessoa, rica ou pobre, que fez isto ou aquilo. Mas é nesses momentos tão curtos que eu me reconheço. São esses pequenos momentos que constroem quem eu sou.

29 março 2009



Kiss Me, Oh Kiss Me
David Fonseca


So when the fight is over,
And the storm is through,
Now will you pick another?
What will you get into?

So you stand in the corner,
With those boxing gloves on you,
You're old, scared and lonely,
Yeah we've all been there too… uh uh
We've been all there too…

Kiss me, oh kiss me,
If that can make it right.
Try me, find me,
Just throw them on me…
Those failed expectations…
Floods and afflictions you're through.
Cause I just might, take them home with me.

And the cracks in the pavement,
Yeah we've all fell there before,
And bones built into skeleton,
We've all been through that door.

Kiss me, oh kiss me,
If that can make it right.
Try me, find me,
Just throw them on me…
Those failed expectations…
Floods and afflictions you're through.
Cause I just might…

Kiss me, oh kiss me,
Will that make things right?
Try me, find me,
Just throw them on me…
Those failed expectations…
Floods and afflictions you're through.
Cause I just might…
I just might, take you home.

Kiss me, kiss me,
We've all been there too,
Kiss me, kiss me
We have all been there too,
Kiss me, kiss me
We've all been there too,
Kiss me, kiss me
So kiss me…

Just in case you might have any doubts... :)

27 março 2009



Shiver
Natalie Imbruglia


I walk a mile with a smile
And I don't know
I don't care where I am
But I know it's alright

Jump the tracks
Can't get back
I don't know anyone around here
But I'm safe this time

Cos when you
Tell me, tell me, tell me
Stupid things, like you do
Yes, I
Have to, have to, have to
Change the rules
I can't lose

Cause I shiver
I just break up
When I'm near you
It all gets out of hand
Yes I shiver
I get bent up
There's no way that
I know you'll understand

We talk and talk
round it all
Who'd have thought
We'd end up here
But I'm feeling fine
In a rush
Never trust
You'll be there
If I'd only stop and take my time

Cos with you
I'm running, running, running
Somewhere I can't get to
Yes I have to have to have to
Change the rules
I'm with you

Cause I shiver
I just break up
When I'm near you
It all gets out of hand
Yes I shiver
I get bent up
There's no way that
I know you'll understand
What if you get off at the next stop
Would you just wave as I'm drifting off
If I never saw you again
Could I
Keep warm
As this
Inside

Cause I shiver
I just break up
When I'm near you
It all gets out of hand
Yes I shiver
I get bent up
There's no way that
I know you'll understand

24 março 2009

I'm sorry

I wish things were easier. I wish love wouldn't hurt so bad. I wish I had the answers for all your questions. And for all of my questions. But I don't have them. I have no ideia of what I'm doing. Of what I feel. I'm completely lost.
I can't erase the past, I can't take the pain away from you. I will only cause you more pain.
You have the right to hate me, but I know you won't do that, even wanting. You have the right to think I'm a monster. Sometimes I do seem one.
All the times I said "I love you", I meant what I said. But somehow that feeling is disapering. And I feel impotent for being unable to do something to avoid that.
I'm really sorry for all the pain I caused you. And for all the pain I may still cause. I never wanted to hurt you. I only wanted you to be happy. But now I can't make you happy. I know I'm the worst person in the world for all the mistakes I've been making. But I can't avoid them. I can't to anything.

23 março 2009





Relax, Take It Easy
Mika


Took a ride to the end of the line
Where no one ever goes.
Ended up on a broken train with nobody I know.
But the pain and the longing's the same
When you're dying.
Now I'm lost and I'm screaming for help alone.

Relax, take it easy
For there is nothing that we can't do.
Relax, take it easy
Blame it on me or blame it on you.

It's as if I'm scared.
It's as if I'm terrified.
It's as if I'm scared.
It's as if I'm playing with fire.
Scared.
It's as if I'm terrified.
Are you scared?
Are we playing with fire?

Relax
(Love) There is an answer to the darkest times.
It's clear we don't understand it, but the last thing on my mind
Is to leave you.
I believe that we're in this together.
Don't scream – there are so many roads left.

Relax, take it easy
For there is nothing that we can't do.
Relax, take it easy
Blame it on me or blame it on you.

Relax, take it easy
For there is nothing that we can't do.
Relax, take it easy
Blame it on me or blame it on you.

Relax, take it easy
For there is nothing that we can't do.
Relax, take it easy
Blame it on me or blame it on you.

Relax, take it easy
For there is nothing that we can't do.
Relax, take it easy
Blame it on me or blame it on you.

It's as if I'm scared.
It's as if I'm terrified.
It's as if I'm scared.
It's as if I'm playing with fire.
(Relax)
Scared.
It's as if I'm terrified.
Are you scared?
Are we playing with fire?

Relax
Relax

04 março 2009



às vezes faz mesmo falta alguém.

03 março 2009

I will (definitely) wait another day

02 março 2009

26 fevereiro 2009

Regresso


Voltar
a percorrer o inverso dos caminhos
reencontrar a palavra sem endereço
e contra o peito insuficiente
oferecer a lágrima que não nos defende
Recolher as marcas da minha lonjura
os sinais passageiros da loucura
e adormecer pela derradeira vez
nos lencçois em que anoitecemos
Reencontrar secretamente
o fugaz encanto
o perfeito momento
em que a carne tocou a fonte
e o sangue
fora de mim
procurou o seu coração primeiro
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas

22 fevereiro 2009

Desertos universais


Era como se não houvesse nomes, aqui, como se não houvesse palavras. O deserto lavava tudo no seu vento, apagava tudo. Os homens tinham a liberdade do espaço no olhar, a sua pele era igual ao metal. A luz do Sol esplendia em todo o lado. A areia ocre, amarela, cinzenta, branca, a areia leve deslizava, mostrava o vento. Cobria todos os vestígios, todos os ossos. Repelia a luz, expulsava a água, a vida, longe de um centro que ninguém podia reconhecer. Os homens bem sabiam que o deserto não os queria para nada: por isso caminhavam sem parar, pelos caminhos que outros pés já haviam percorrido, para encontrar outra coisa. A água, essa, estava nos aiun, os olhos, cor de céu, ou então nos leitos húmidos dos velhos riachos de lama. Mas não era água para o prazer ou para o repouso. Era quando muito um vestígio de suor à flor do deserto, o dom parcimonioso de um Deus seco, o último movimento da vida. Água pesada arrancada à areia, água morta das fendas, água alcalina que provocava cólicas, que fazia vomitar. Era preciso ir mais longe, um pouco curvado para a frente, na direcção que tinha sido apontada pelas estrelas.
Mas era o único, talvez o último país livre onde as leis dos homens já não tinham importância. Um país para as pedras e para o vento e também para os escorpiões e os gerbos, que sabem fugir e esconder-se quando o sol queima e a noite gela.

J. M. G. Le Clézio, Deserto

20 fevereiro 2009


SOLIDÃO

Um mar rodeia o mundo de quem está só. é
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. «É um mundo impenetrável», diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais existe para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar sem marés, para tomar uma decisão.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês

16 fevereiro 2009

É uma daquelas músicas que me arrepia. E que me acalma.

06 fevereiro 2009



TRÍPTICO



I
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.



Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amado é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que trasforma a coisa amada.



Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquel grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador.
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.



E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.



II
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.



Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.



Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,



que te procuram.



III
Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz
num peso íntimo de alegria como um existir de mão

fechada puramente sobre o ombro.
Junto as coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos altos - meus pensamentos criam-se
com um outrora lento, um sabor
de terra velha e pão diurno.



E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
a minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.



Ela explica tudo, e o vir para mim -
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
- é a vida ser redonda
com seus ritmos sobressaltados e antigos.



Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.

Herberto Helder, Ofício Cantante

03 fevereiro 2009





Hoje, pela primeira vez em muitos anos, escrevi uma carta. Pelo meu próprio punho, a sentir o arranhar da caneta no papel a cada palavra. E gostei. E gostei mais ainda das expressões que vi na cara da pessoa a quem entreguei essa carta.

Às vezes uma coisa tão simples sabe-nos tão bem.


Fotografia de Maria Isabel Batista

02 fevereiro 2009


Por motivos de falta de tempo, exclusivamente da culpa da autora, este blogue foi deixado ao abandono durante vários meses. Muita coisa aconteceu desde então. Espero agora conseguir regressar, não com fôlego renovado, mas com algumas palavras que entretanto aprendi. Palavras que se agarram à pele quando menos esperamos.

Fotografia de autor desconhecido