20 abril 2009

O algures

"Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que se passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos.
Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça viver uma vida ou um instante que poderiam ser seus; no lugar daquele homem agora poderia estar ele se tivesse parado no tempo muito tempo antes, ou se muito tempo antes numa encruzilhada em vez de tomar uma estrada tivesse tomado a oposta e ao cabo de uma longa volta viesse encontrar-se no lugar daquele homem naquela praça. Agora, daquele seu passado verdadeiro ou hipotético ele está excluído; não pode parar; tem de prosseguir até outra cidade onde o espera outro seu passado, ou algo que talvez tivesse sido um seu possível futuro e agora é o presente de outro qualquer. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.
- Viajas para reviver o teu passado? - era agora a pergunta do Kan, que também podia ser formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de Marco: - O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá."
Italo Calvino, As cidades invisíveis

17 abril 2009

Dias e noites

Por vezes não há dias nem noites
e tudo o que resta é um sorriso cravado dentro de nós
para nos acompanhar quando tudo se desmorona

Por vezes há horas maiores que a vida
horas fundas em que o bater do coração nos atordoa
como um prenúncio de morte

Por vezes os dias duram longas horas
sem que encontremos palavras ou gestos
e tudo o que possamos dar seja silêncio

Mas por vezes há palavras que chegam suavemente
sorrisos que nos levam para muito longe
e nos salvam de nós próprios

11 abril 2009

Lugares



"Evidentemente, comentou então o croata, era mais divertido, ou emocionante, matar devido a um ódio sólido e bom. Mais satisfatório e vulgar. Com o sangue ao rubro, uivando de júbilo enquanto se esfola a vítima.
- É como o álcool ou o sexo - acrescentou. - Acalmam muito, aliviam. Mas para homens que, como nós, passaram muito tempo a olhar para a mesma paisagem, esse alívio permanece longínquo. Uma navalha partida entre os escombros de uma casa, uma montanha despida atrás do arame farpado, o fundo de um quadro oara onde se viaja durante toda a vida... Lugares, lembre-se, de onde nunca mais se consegue voltar."

Arturo Pérez-Reverte, O Pintor de Batalhas

04 abril 2009

Melancolia 2

"Apenas Veneza era impossível de classificar: alterava-se, era fluida, fundia-se, ora tinha cor de jade e rosa, ora era cor de púrpura suave, quando o pôr do Sol ficava encoberto pelas nuvens. Veneza era o azul de um vestido da Virgem de Tintoretto, o castanho da madeira da Cruz num quadro de Carpaccio; Veneza era a escuridão dos olhos de Isabella, o cor-de-rosa pálido da sua boa, o preto das gôndolas e do sofrimento.
A nostalgia tem a ver com a idade; ele aceita isso, mas lamenta que só na sua mente consiga, agora, encontrar a variedade de cores da vida. Hoje, todo aquele esplendor, o brilho dos lábios, dos olhos e da paisagem, diminuiu e desapareceu na escuridão de um quarto, em Paris, numa noite chuvosa. E ele é um homem velho."

Lee Langley, Uma conversa no Quai Voltaire

02 abril 2009

Recordações

Li isto, e fiquei a pensar. Faz sentido, faz todo o sentido. São os pequenos momentos da vida que mais recordamos, escassos segundos que um dia mais tarde nos ficam presos na memória.
Sei que não vou esquecer o dia em que o meu avô morreu, , em que a minha mãe me foi buscar à escola e me deu a notícia; eu tinha seis anos, e durante meses não consegui adormecer com medo de morrer a dormir. Sei que não vou esquecer o momento em que, pela primeira vez, alguém me beijou, e eu soube que era tão certo e tão errado. O momento em que vi nos olhos da minha mãe que ela sabia que eu amava uma rapariga, e que por muito que ela só me deseje felicidade, eu lhe dei a maior desilusão da vida dela. O dia em que passeamos juntas, e te vi sorrir como nunca antes.
Não é por esses momentos que um dia alguém me vai recordar, se chegar sequer a recordar. É por ter sido boa ou má pessoa, rica ou pobre, que fez isto ou aquilo. Mas é nesses momentos tão curtos que eu me reconheço. São esses pequenos momentos que constroem quem eu sou.