26 fevereiro 2009

Regresso


Voltar
a percorrer o inverso dos caminhos
reencontrar a palavra sem endereço
e contra o peito insuficiente
oferecer a lágrima que não nos defende
Recolher as marcas da minha lonjura
os sinais passageiros da loucura
e adormecer pela derradeira vez
nos lencçois em que anoitecemos
Reencontrar secretamente
o fugaz encanto
o perfeito momento
em que a carne tocou a fonte
e o sangue
fora de mim
procurou o seu coração primeiro
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas

22 fevereiro 2009

Desertos universais


Era como se não houvesse nomes, aqui, como se não houvesse palavras. O deserto lavava tudo no seu vento, apagava tudo. Os homens tinham a liberdade do espaço no olhar, a sua pele era igual ao metal. A luz do Sol esplendia em todo o lado. A areia ocre, amarela, cinzenta, branca, a areia leve deslizava, mostrava o vento. Cobria todos os vestígios, todos os ossos. Repelia a luz, expulsava a água, a vida, longe de um centro que ninguém podia reconhecer. Os homens bem sabiam que o deserto não os queria para nada: por isso caminhavam sem parar, pelos caminhos que outros pés já haviam percorrido, para encontrar outra coisa. A água, essa, estava nos aiun, os olhos, cor de céu, ou então nos leitos húmidos dos velhos riachos de lama. Mas não era água para o prazer ou para o repouso. Era quando muito um vestígio de suor à flor do deserto, o dom parcimonioso de um Deus seco, o último movimento da vida. Água pesada arrancada à areia, água morta das fendas, água alcalina que provocava cólicas, que fazia vomitar. Era preciso ir mais longe, um pouco curvado para a frente, na direcção que tinha sido apontada pelas estrelas.
Mas era o único, talvez o último país livre onde as leis dos homens já não tinham importância. Um país para as pedras e para o vento e também para os escorpiões e os gerbos, que sabem fugir e esconder-se quando o sol queima e a noite gela.

J. M. G. Le Clézio, Deserto

20 fevereiro 2009


SOLIDÃO

Um mar rodeia o mundo de quem está só. é
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. «É um mundo impenetrável», diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais existe para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar sem marés, para tomar uma decisão.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês

16 fevereiro 2009

É uma daquelas músicas que me arrepia. E que me acalma.

06 fevereiro 2009



TRÍPTICO



I
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.



Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amado é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que trasforma a coisa amada.



Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquel grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador.
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.



E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.



II
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.



Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.



Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,



que te procuram.



III
Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz
num peso íntimo de alegria como um existir de mão

fechada puramente sobre o ombro.
Junto as coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos altos - meus pensamentos criam-se
com um outrora lento, um sabor
de terra velha e pão diurno.



E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
a minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.



Ela explica tudo, e o vir para mim -
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
- é a vida ser redonda
com seus ritmos sobressaltados e antigos.



Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.

Herberto Helder, Ofício Cantante

03 fevereiro 2009





Hoje, pela primeira vez em muitos anos, escrevi uma carta. Pelo meu próprio punho, a sentir o arranhar da caneta no papel a cada palavra. E gostei. E gostei mais ainda das expressões que vi na cara da pessoa a quem entreguei essa carta.

Às vezes uma coisa tão simples sabe-nos tão bem.


Fotografia de Maria Isabel Batista

02 fevereiro 2009


Por motivos de falta de tempo, exclusivamente da culpa da autora, este blogue foi deixado ao abandono durante vários meses. Muita coisa aconteceu desde então. Espero agora conseguir regressar, não com fôlego renovado, mas com algumas palavras que entretanto aprendi. Palavras que se agarram à pele quando menos esperamos.

Fotografia de autor desconhecido