20 maio 2008

Sempre que regressavas

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Agora estás longe
e nós nem sempre conseguimos sentir a tua falta
não ouço a tua voz colada às paredes da minha memória
não espero ver-te chegar ao cair da noite

já não temos tempo para recuar
inventar as conversas que não tivemos
pedir-te um abraço
quando eu tinha seis anos e medo de morrer a dormir

já não há a inocência de acreditar
que um dia vais mudar
afastar os silêncios e sorrir
ou simplesmente
perguntar-me como foi o dia

já não há lagrimas para chorar
no escuro do meu quarto
no escuro do meu corpo
não há mágoa para guardar no peito

agora estás longe
e eu não espero o teu regresso

19 maio 2008

Sempre que regressavas

ao meu pai

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Sempre que regressavas
a casa enchia-se de um silêncio espesso
e os nossos passos ecoavam nos corredores
como se procurassemos não tocar no chão

olhavamos a mesa posta para o jantar
a porta que ficava sempre aberta
as luzes deixadas acesas
a roupa espalhada no quarto

nunca tinhas um gesto ou uma palavra
nunca te lembravas como se sorri
ou como se constrói um mundo de sonhos na juventude

eu não sabia como medir a distância entre nós
nem como atravessar esse espaço negro
cheio de ausências e coisas por dizer

por isso sempre que regressavas
deixávamos o silêncio cair sobre a casa
e eu fechava-me no fundo de mim própria
para não ver
quanto de ti passava por trás dos meus olhos

Rios sempre iguais

Amanhece devagar
sobe-nos à boca o sabor do medo
da inquietude de perder detalhes
minerais brilhantes nos recantos da memória

sombras atravessam as paredes e os corpos
demoram-se sobre a pele
deixam gravada a sua presença

depois há a fuga para norte
(ou para a noite)
para dias mais frios gestos mais ternos que nos embalam na escuridão

abandonamos as cidades da nossa juventude
deixamos os segredos nos jardins
vestígios de loucura
e regressamos por rios sempre iguais

14 maio 2008

Segredos

Voltas atrás
recordas minuciosamente cada gesto
a lucidez e o relógio parado
o vento a estilhaçar vozes na rua

recordas o silêncio e o medo da morte
as mãos trémulas e o sangue
o tempo que não tiveste para crescer

depois disso amaste
odiaste o mundo fumaste sofregamente
não houve lágrimas que te redimissem
e levassem os ruídos da noite
que sempre te assustaram

não houve presente que te tirasse
a dor de nem o teres conhecido

12 maio 2008

Em certos dias a loucura...

Escrevo-te porque não tenho palavras
Escrevo-te porque te perco na distância deste silêncio
no cansaço do sonho que nos atraiçoa

escrevo-te a lápis para te ter mais perto
para te tocar na suavidade da página
sentir a tua pele estremecer sob os meus dedos
quando nada mais me pode salvar

escrevo-te sem esperanças nem impérios
sem areais ao anoitecer
sem cidades escuras onde fomos felizes

escrevo-te na vastidão desta insónia
murmúrios no lento passar das horas
dias em que julgo que a loucura se aproxima

08 maio 2008

Silêncios

Oiço a tua voz nas entrelinhas do poema
mesmo quando a ausência nos consome

as imagens repetem-se sempre iguais
esperar por um autocarro fumar um cigarro
patir para o destino que já não reconheço

quando aqui cheguei não tinha palavras
nem madrugadas
só o silêncio vago da solidão
tu deste-me todas as tuas palavras
permitiste-me usá-las
e construir com elas o nosso futuro

hoje sei que vive entre nós a distância deste abandono
a arte de apaziguar as sombras que nos acompanham
e atravessar cada dia com uma serena esperança no amanhã