31 março 2008

Amanhã vai ser um dia ainda mais perfeito




Nas ruínas do amanhecer sinto subitamente a tua falta
como se por estares aqui agora tudo fosse diferente
como se um gesto teu desse sentido ao caos dentro de mim

procuro na tua ausência
uma forma de sobreviver a este silêncio desolado que me consome
um vestígio deste amor insone
a recordação do teu sorriso numa tarde de outono
em que julguei que morria de tanto te querer

o vento atravessa a rua vazia
acompanha-me neste desespero
que se desvanece com o passar das horas

saber que lentamente te aproximas
e que amanhã vai ser um dia ainda mais perfeito

27 março 2008

Palavras que se sentem

vésperas do medo

viajo por este lugar onde cresceu
a fronteira entre a noite e a palavra,
aqui os animais trazem o medo até à minha mão:
e nela fica a baba;
vive-se a desolação no que resiste de um corpo,
na casa entregue à voracidade das trepadeiras;
viajo pelo equívoco de um rosto
frente a outro rosto o relatório
lê a tua vida até ao nome

Rui Nunes, Ofício de Vésperas

26 março 2008

Faça-se silêncio



Por vezes é no silêncio que encontramos todas as respostas.
Fotografia de Vítor Ribeiro

Dias como hoje



Há dias em que a realidade se torna uma dor
tudo parece demasiado terrível
tudo se desmorona dentro de mim
o único refúgio possível parece ser a solidão

não há sorriso possível
não há voz que me traga à superfície
cada vez mais só dentro de mim

e depois surges tu
como se as sombras tivessem fraquezas
e pudesse acreditar que me afastas delas
surges tu mais forte que este medo
e com um gesto trazes-me do fundo desta angústia que não escolhi

há dias em que tudo se consome
como um vento demasiado gelado que nos toca no rosto
mas já nem sequer magoa

e há dias em que sorris e tenho-te em mim
cada vez mais forte dentro de mim
e apetece ficar aqui mais um bocadinho
adormecer devagar
acordar ao teu lado
Fotografia de Rafael Vieira

24 março 2008

Ardor e sombras

Tudo o que de negro há em nós nos consome
nos destrói pouco a pouco
a mágoa que lentamente corrói memórias de risos e ternura
que traz à flor da pele ardor e sombras

procuramos no tempo uma cura que nunca chega
uma redenção de todos os erros
uma promessa sussurrada ao anoitecer
já não temos a inocência de acreditar em melhores dias

vives neste país de desencanto e brumas
não sabes se o amanhã chegará a tempo
se haverá palavras que te tirem o medo da morte

palavras que te tragam de volta o sorriso que tanto amaste

23 março 2008

Só abandono



Dói-me o que nos resta no fim de uma noite
corpos gelados como se estivessemos ausentes

dói-me esta distância que entre nós se construiu
recordar o passado que guardas em ti
e te consome
perder gestos e palavras a cada momento

ficamos depois assim só abandono
ver as horas passar nos teus olhos
silenciar este rumor que me povoa o peito
encontrar uma voz frágil um esquecimento
que nos possa salvar

21 março 2008

Não me fujas

Porque é que teimas em esconder o que há em ti? Como se não confiasses em mim, como se tudo fosse desmasiado terrível? Sabes bem que não é. Sabes que não há o que me faça desistir. Nada nem ninguém, lembraste? Eu sei que me escondo, sei que me recuso a mostrar-te tanta coisa, tanto que te poderia mostrar se não tivesse um medo tão grande de te perder. Mas, por favor, não te tornes igual a mim. Não te deixes levar por esta escuridão tão funda e dolorosa. Senão quem me salvará? Quem me abraçará quando o mundo se vira contra nós, meu amor?

Como se a morte não bastasse

Não mais que abandono

sabeis o meu destino: não prolongueis, por isso,
mais que as palavras e as demoras. abandonai-me
nas longínquas pedras junto da água e deixai-me
morrer profundamente como se a morte não bastasse.

nao há enganos: por mim é outro que do aroma do
mar colhe a pequena imagem que por outro se repete
como se não bastasse uma vez adormecer no eclipse
mas tudo ao abandono nos condenasse, para sempre.

sabeis o meu destino e sabeis que ele não se perde
em mim mas em outro que por mim morre lentamente,
como se a morte não bastasse. é nesse outro que vivo

e nesse outro perco-me a mim mesmo enquanto peixes
e cores do inverno invadem a casa, perdidamente, para
poder encontrar abandono, não mais que abandono.

Francisco José Viegas, Todas as Coisas

20 março 2008

Solidão silenciosa




Mantenho esta dolorosa distância
por não ter maneira de lhe fugir
como se fosse neblina dentro do corpo
um silêncio resignado

temo o amanhecer os desenganos
a morte
uma lágrima na tua voz

temo arrastar-te para a solidão que há em mim


Fotografia de Renato Brandão

19 março 2008

Vi-te acordar




Vi-te acordar. Olhos fechados, gestos lentos, voz entorpecida. Vi-te acordar e fui feliz, tão absurdamente feliz, por poder estar em silêncio a teu lado, muda de deslumbramento, perdida num momento tão simples e tão perfeito. Ainda agora, tempo passado, não sei ao certo o que senti, não sei como foi possível tudo aquilo, uma noite, uma vida inteira nos teus braços.
Só sei que aconteceu. E não podia ter sido de outra forma.

Fotografia de Eric Alan Pritchard

Dedicado a S.

Sombras

1.
a ti recordo a todas as horas do tempo,
e isso é a alegria única, a que não morre nem aguarda,
e por ela escondo as luzes da cidade, e entendo que existe
um movimento permanente sob o céu,

reconheço o nome das espécies, invento aquilo que há-de vir,
aquilo que te ofereço, o que se encontra nu sobre a noite,
inclino-me sobre os teus passos a todas as horas do tempo,
confio nos calendários que se aproximam,
espalho faróis sobre os mapas.

se me afasto de ti, deixo-te o coração,
levo o teu em troca.

2.
se me afasto de ti, deixo-te o coração,
levo o teu em troca, nele respiro, ardo como um nome frio,
junto às vozes da rua uma passagem ilumina as tardes
com um perfume novo; o movimento dos barcos
habita o mar, desenhos do paraíso vivem disso, e do céu,

e de um corpo que tem saudades do corpo que lhe é mais seu.
tenho sonhos. um no outro descobrimos dias sem infinito.
o aroma permanece nas salas depois do amor,
sigo-o como à luz do mar, a tua voz está sempre próxima;
inverno a inverno, quando vierem, nos acolhem
docemente, só o milagre de um dia haver um jardim como este.

3.
este é o jardim em imagens perfeitas, comigo repleto do que nasceu
entre nós. o prazer de uma mesa onde crescem o pão,
as moedas, a alegria, o não ter senão dois nomes para o tempo:
o teu e aquele que há-de vir.

e outras coisas ainda: a primeira claridade da noite, rasgando-a,
e o vento que chega do deserto, a chuva nos campos,
os caminhos mais longos.

4.
um dia teria de haver um jardim como este,
nele crescerá a hera aguardando o inverno,
haverá um lugar nele, as crianças brincam e aguardam também,
como ambos sabemos.
será assim o registo desse lugar, e assim o diremos como geógrafos:
a parte das estrelas, o telhado da casa, os morangos,
a copa das árvores, a mesa, a roupa, as vozes no crepúsculo,
os degraus, a sombra, a varanda, a sede, setembro,
a água da chuva, o lado de fora de um fruto,
o lado de dentro de um fruto, o perfume do teu lenço,
as folhas de outono no jardim, as abelhas, o silêncio
no cume de um monte, a inocência, o verão,
o azul, o azul infinito, as veredas do bosque,
a caligrafia dos teus recados, as árvores reconhecidas,
os desenhos de um barco nas ilhas do sul,
uma viagem aos trópicos, as fotografias mais antigas,
a neblina, os anjos, o teu nome junto de um farol.

5.
a quem darei todos os dias da minha vida? a voz que levo
em mim impressa como o rumor dos jardins, os rebanhos
descem pelas encostas, a neve abandona as giestas,
uma banda de província comemora o entardecer. tu e eu dançaremos
como antigamente o verão nos chamava, pelas romarias,
e passaremos as noites em viagem. reinventei o mundo agora,
tu o fizeste assim, uma única vez se diz o nome que nos fez
voar sobre as searas. a quem darei a minha vida?
aquilo que deixámos um no outro marcado como um fogo,
o sobressalto, as novas palavras. o tempo demora, e volve, devagar,
sobre si mesmo, nos pátios mais antigos. do primeiro ao último dia,
a quem darei todos os dias da minha vida?

6.
nome amado, o teu, como o aroma mais perfeito
de todo o tempo.
há um declive verde nas colinas, a sombra emudece,
a névoa separa as margens de um rio,
a neve poisa entre os carvalhos, o linho adormece na terra,
a música prepara o seu regresso, suspensa na noite
entre os seus temores.
nome amado, o teu, nome demorado na minha vida,
nome que não esquece onde eu preparo o nome de ambos

como as razões antes das tempestades,
entre os dedos crescem as florestas, iluminam-se
as águas, o rosto de um corpo junto de outro corpo.

Francisco José Viegas, O Medo do Inverno

Falta-nos tempo

Falta-nos tempo
para olhares desmedidos
palavras ternas em manhãs geladas
um toque que nos redimisse de toda a dor

falta-nos a inocência e o silêncio
longas noites de esquecimento
abandonando a solidão que nos consumiu por um beijo
como agora sentir o teu coração a bater junto ao meu na penumbra
ter-te nos meus braços horas sem fim
preencheres este vazio que queima dentro de mim com o teu sorriso

desejar não morrer nunca

falta-nos tempo para o futuro
e para o presente deste amor
um sonho que mal sabemos como sonhar

18 março 2008

A escuridão em mim

Guardo segredos. Guardo em mim tudo o que sinto que te poderá levar para longe. Todos os erros. Todas as dúvidas. Guardo-os em mim até não aguentar mais. E explodir. Faço-o porque tenho medo. Um medo horrível, que me consome por dentro, de te perder. Como agora tenho medo dessa paixão adormecida que ainda vive dentro de ti.
Salva-me dos meus medos. Salva-me de mim mesma, por favor.

17 março 2008

O porquê de aqui estar, o porquê de viver...

Era chegado o momento de anotar meticulosamente todos os sons, as conversas que ouvia no silêncio da casa; criar um diário deste amor insone, registar os seus medos e esperanças, os seus rituais, avançar em ti como agora me descubro a mim. Por isso prefiro não to dizer enquanto te encaro, por tudo o que te entrego sem confessar.
Talvez venhas a encontrar estas palavras e nelas ver tudo o não te mostro. Por agora são como que secretas, apenas suspeitas.
Ainda me falta a coragem para tas dar, meu amor.

Inspirações



se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha que nos sinaliza a vida


sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor


depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo


mas se a juventude viesse novemente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição

Al Berto, O Medo