07 setembro 2008

Lar, doce lar...

"Não escrevo muito em casa. Preciso de outras condições e de outros lugares. Mas posso pensar, ouvir música, ler na cama e tomar apontamentos. Posso alimentar quatro amigos; e, pensando bem, é um sítio onde posso pendurar o chapéu."

Bruce Chatwin, Anatomia da Errância

29 agosto 2008

Antínoo

Sob o peso nocturno dos cabelos
Ou sob a lua divina do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida

Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passaste através de mim
Como passamos através da sombra

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética II

28 agosto 2008


Fotografia de Patrícia Gomes Lucas, Furnas, Ericeira

Um amor que nos consome

"Mas os rostos que procuramos desesperadamente escapam-nos: nunca é mais que um momento..."

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano

20 agosto 2008

Fotografia de Patrícia Gomes Lucas, Praia dos Pescadores, Ericeira

14 agosto 2008

Lunar

Nunca mais poderei deixar o meu corpo esquecido junto ao teu. O mundo que não existia longe da tua pele. Os meus dedos a deslizarem pela superfície da pele das tuas mãos. E o desejo enganava-nos.

José Luís Peixoto, Antídoto

O coração falha um batimento

O coração falha um batimento
nesta casa de sombras esquecidas
repito os mesmos gestos
o mesmo tom de voz
repito a mesma melancolia resignada

somos silenciosos
esperamos horas sem fim pela palavra distraída
vemos o mundo acordar lá fora
mas não aqui

temos a sabedoria e o frio do mármore
o medoe o vento assobiando nas janelas
a memória
os passos que ecoam
o castigo de deus nas almas dos homens

Walking

Sometimes there's no hope in the other side of the passage.

Fotografia de autor desconhecido

10 julho 2008

As palavras dos teus olhos

Trago-te no correr dos dias na curva dos ombros
nas palavras dos teus olhos quando me observas deitada sobre a cama
trago-te no silêncio espesso da noite
ou na voz que me embala junto ao teu peito

o dia morre para lá desta janela
e no reflexo do vidro vejo o rosto que dizes surgir das sombras
quando menos espero

tenho a juventude nas pontas dos dedos
reinos de lucidez e sabedoria
a respiração demorada dos sonhos por sonhar
e um murmúrio surdo dentro de mim que te pede que me guardes
ainda que tudo se desmorone

trago-te em mim
e nas horas inquietas deste amor
no fumo do cigarro que se espalha no ar
no tremor das minhas mãos quando te aproximas
tenho-te a ti
e a uma vida inteira para imaginar

18 junho 2008

O ardor das lágrimas

Sempre que esta distância se impõe
vejo dentro de mim um vazio tão negro
tão fundo
e julgo cair para dentro dele
para dentro de mim mesma

neste vagar de horas interrompidas
espero silenciosamente
uma solidão que me redima
poder sentir no peito a palavra que murmuras
para lá do ardor das lágrimas

Onde quer que o encontres

Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,

para sempre, o meu nome.

Maria do Rosário Pedreira, Nenhum Nome Depois

20 maio 2008

Sempre que regressavas

2
Agora estás longe
e nós nem sempre conseguimos sentir a tua falta
não ouço a tua voz colada às paredes da minha memória
não espero ver-te chegar ao cair da noite

já não temos tempo para recuar
inventar as conversas que não tivemos
pedir-te um abraço
quando eu tinha seis anos e medo de morrer a dormir

já não há a inocência de acreditar
que um dia vais mudar
afastar os silêncios e sorrir
ou simplesmente
perguntar-me como foi o dia

já não há lagrimas para chorar
no escuro do meu quarto
no escuro do meu corpo
não há mágoa para guardar no peito

agora estás longe
e eu não espero o teu regresso

19 maio 2008

Sempre que regressavas

ao meu pai

1
Sempre que regressavas
a casa enchia-se de um silêncio espesso
e os nossos passos ecoavam nos corredores
como se procurassemos não tocar no chão

olhavamos a mesa posta para o jantar
a porta que ficava sempre aberta
as luzes deixadas acesas
a roupa espalhada no quarto

nunca tinhas um gesto ou uma palavra
nunca te lembravas como se sorri
ou como se constrói um mundo de sonhos na juventude

eu não sabia como medir a distância entre nós
nem como atravessar esse espaço negro
cheio de ausências e coisas por dizer

por isso sempre que regressavas
deixávamos o silêncio cair sobre a casa
e eu fechava-me no fundo de mim própria
para não ver
quanto de ti passava por trás dos meus olhos

Rios sempre iguais

Amanhece devagar
sobe-nos à boca o sabor do medo
da inquietude de perder detalhes
minerais brilhantes nos recantos da memória

sombras atravessam as paredes e os corpos
demoram-se sobre a pele
deixam gravada a sua presença

depois há a fuga para norte
(ou para a noite)
para dias mais frios gestos mais ternos que nos embalam na escuridão

abandonamos as cidades da nossa juventude
deixamos os segredos nos jardins
vestígios de loucura
e regressamos por rios sempre iguais

14 maio 2008

Segredos

Voltas atrás
recordas minuciosamente cada gesto
a lucidez e o relógio parado
o vento a estilhaçar vozes na rua

recordas o silêncio e o medo da morte
as mãos trémulas e o sangue
o tempo que não tiveste para crescer

depois disso amaste
odiaste o mundo fumaste sofregamente
não houve lágrimas que te redimissem
e levassem os ruídos da noite
que sempre te assustaram

não houve presente que te tirasse
a dor de nem o teres conhecido

12 maio 2008

Em certos dias a loucura...

Escrevo-te porque não tenho palavras
Escrevo-te porque te perco na distância deste silêncio
no cansaço do sonho que nos atraiçoa

escrevo-te a lápis para te ter mais perto
para te tocar na suavidade da página
sentir a tua pele estremecer sob os meus dedos
quando nada mais me pode salvar

escrevo-te sem esperanças nem impérios
sem areais ao anoitecer
sem cidades escuras onde fomos felizes

escrevo-te na vastidão desta insónia
murmúrios no lento passar das horas
dias em que julgo que a loucura se aproxima

08 maio 2008

Silêncios

Oiço a tua voz nas entrelinhas do poema
mesmo quando a ausência nos consome

as imagens repetem-se sempre iguais
esperar por um autocarro fumar um cigarro
patir para o destino que já não reconheço

quando aqui cheguei não tinha palavras
nem madrugadas
só o silêncio vago da solidão
tu deste-me todas as tuas palavras
permitiste-me usá-las
e construir com elas o nosso futuro

hoje sei que vive entre nós a distância deste abandono
a arte de apaziguar as sombras que nos acompanham
e atravessar cada dia com uma serena esperança no amanhã

29 abril 2008

Entre Julho e Novembro

3.


É onde não respiras que a morte me descobre
e pretende apertar-me num casaco de pedra
É onde não respiras Mas rebenta a revolta
com o curto-circuito de uma cadeira eléctrica

É onde não respiras E vou roendo as trevas
à procura da pista de mais um europorto
e daquelas cidades onde só nos conhece
o amor que trazemos entranhado no corpo

Esta noite é tão negra que seria uma estrada
se não houvesse a esperança de aves e aviões
Ou melhor a promessa de uma hora inexacta
Ou melhor a certeza de fugirmos os dois

David Mourão-Ferreira, Do Tempo ao Coração

28 abril 2008

Travessias



Registo em silêncios o itinerário da longa viagem
que inevitavelmente terei de fazer
por entre equívocos e ruas cinzentas

pressinto que se aproxima uma despedida
uma porta entreaberta na penumbra da casa
uma respiração lenta que anuncia a manhã

todos os abismos me chegam como vozes dispersas
desejos de eternidade na ponta dos dedos
a vibração do mar que nos leva para longe

nem sempre chegamos a tempo de salvar alguém
que nos habita o peito
e nem sempre as lágrimas preenchem o vazio dentro de nós
ou o amor nos leva as sombras

Fotografia de Todd McDonald

16 abril 2008

Diálogos mudos



3.
Os nossos corpos respiram intensamente
coroando de luz todos os gestos
todas as marcas que deixas gravadas na minha pele
dia após dia

anoitecemos lentamente
com um cansaço sereno nas pontas dos dedos
renunciamos ao mundo que nos engole
e só encontramos refúgio na subtil desilusão do crepúsculo

temos silêncios nas mãos e o estremecer do coração
a terna escuridão das nossas próprias palavras

temos a ingenuidade deste amor
um sorriso fechado em dias nublados
a tranquilidade lenta com que te aproximas do abismo
aproximamos
diálogos mudos ou jardins distantes

Fotografia de Hugo Gomes

14 abril 2008

A cadência do coração


1.
De todas as promessas feitas
fica-nos na boca o sabor leve
de um dia as cumprirmos
como o beijo pelo qual esperámos em noites de insónia
e que guardámos docemente no peito

sonhamos com cidades sombrias
no silêncio distante do futuro
para onde possamos fugir quando tudo se desmorona

acordamos e adormecemos na neblina espessa destes dias
mãos geladas o teu corpo na penumbra

construimos listas e mapas
vastas cartografias do tempo
por onde os nossos gestos não passam

esquecemos o que fez de nós murmúrios
paisagens abandonadas vestígios de paixão

acordamos uma e outra vez
no incêndio lento do amanhecer
sem saber ainda o que a luz fará de nós


2.
Não sabemos por vezes o que a luz fará de nós
quando o dia começa sem aviso
e nos acorda para o frágil passar das horas

temos (nesses momentos) a certeza
de nenhuma solidão nos poder devastar novamente
enquanto as minhas lágrimas se perdem na pele do teu ombro

esperamos pacientemente pelo anoitecer
com suas vozes surdas fumo dos cigarros
fragmentos de uma memória mutilada
o ruído da morte que não olhamos nos olhos

nesses momentos escutamos a cadência do coração
batendo do meu peito para o teu
no espaço restrito deste amor
onde se esconde a sombra da noite
e a intensa respiração dos nossos corpos

13 abril 2008

Fatalidades

Será assim tão terrível o passar das horas
esperar num vão de escada assombrado
pelo teu regresso

sem tabaco sem sonhos
consumida pela fatalidade de não ter palavras quando te aproximas
e de nem sempre os silêncios dizerem tudo o que se sente

esperar envolta em sombras medos
tantos anos de solidão à flor da pele

e por fim
abandonar-me à mudez da tua ausência

10 abril 2008

Melancolia

O homem que existiu


II.
A melancolia é uma questão de tempo,
disse-me o homem. Era um homem que existia,
normal como os que existem.
Daqueles que não
costumam vir nos poemas
porque não
são centros de metáfora ou de revolução.
Porque não
gritam nunca.
Porque não
dizem não.


Hoje sei.
A melancolia é uma questão de falta
de tempo.


Filipa Leal, O problema de ser norte

Cidades esquecidas

Fotografia de Alexei Gourianov

09 abril 2008

Violência do silêncio

Como se de uma morte se tratasse
atravessamos dia a dia o vazio ruidoso da cidade
seguimos os relógios e as marés
melancolia que nos habita por dentro

nas manhãs mais negras
fechamos os olhos e adormecemos à beira do abismo
como se de uma morte se tratasse
com a voz da noite na memória

nem sempre chegamos a tempo
demasiado sós a enfrentar o vento
ou a nossa cegueira de todas as horas
nem sempre sabemos que o momento passou

tememos a escuridão e a loucura
o amor
e a súbita violência do silêncio

Nós e as palavras

Dúvida

Sabemos que as palavras
nos protegem do mundo.
Mas quem nos protege
das palavras?


José Mário Silva, Nuvens & Labirintos

07 abril 2008

Dreaming...



Just let the blood run red
cause I can´t feel anymore
Kyoto was a dream

Fotografia de Alexei Gourianov




02 abril 2008

Solidão




E, de repente, uma absurda solidão.
Fotografia de Sandra Ferrás

31 março 2008

Amanhã vai ser um dia ainda mais perfeito




Nas ruínas do amanhecer sinto subitamente a tua falta
como se por estares aqui agora tudo fosse diferente
como se um gesto teu desse sentido ao caos dentro de mim

procuro na tua ausência
uma forma de sobreviver a este silêncio desolado que me consome
um vestígio deste amor insone
a recordação do teu sorriso numa tarde de outono
em que julguei que morria de tanto te querer

o vento atravessa a rua vazia
acompanha-me neste desespero
que se desvanece com o passar das horas

saber que lentamente te aproximas
e que amanhã vai ser um dia ainda mais perfeito

27 março 2008

Palavras que se sentem

vésperas do medo

viajo por este lugar onde cresceu
a fronteira entre a noite e a palavra,
aqui os animais trazem o medo até à minha mão:
e nela fica a baba;
vive-se a desolação no que resiste de um corpo,
na casa entregue à voracidade das trepadeiras;
viajo pelo equívoco de um rosto
frente a outro rosto o relatório
lê a tua vida até ao nome

Rui Nunes, Ofício de Vésperas

26 março 2008

Faça-se silêncio



Por vezes é no silêncio que encontramos todas as respostas.
Fotografia de Vítor Ribeiro

Dias como hoje



Há dias em que a realidade se torna uma dor
tudo parece demasiado terrível
tudo se desmorona dentro de mim
o único refúgio possível parece ser a solidão

não há sorriso possível
não há voz que me traga à superfície
cada vez mais só dentro de mim

e depois surges tu
como se as sombras tivessem fraquezas
e pudesse acreditar que me afastas delas
surges tu mais forte que este medo
e com um gesto trazes-me do fundo desta angústia que não escolhi

há dias em que tudo se consome
como um vento demasiado gelado que nos toca no rosto
mas já nem sequer magoa

e há dias em que sorris e tenho-te em mim
cada vez mais forte dentro de mim
e apetece ficar aqui mais um bocadinho
adormecer devagar
acordar ao teu lado
Fotografia de Rafael Vieira

24 março 2008

Ardor e sombras

Tudo o que de negro há em nós nos consome
nos destrói pouco a pouco
a mágoa que lentamente corrói memórias de risos e ternura
que traz à flor da pele ardor e sombras

procuramos no tempo uma cura que nunca chega
uma redenção de todos os erros
uma promessa sussurrada ao anoitecer
já não temos a inocência de acreditar em melhores dias

vives neste país de desencanto e brumas
não sabes se o amanhã chegará a tempo
se haverá palavras que te tirem o medo da morte

palavras que te tragam de volta o sorriso que tanto amaste

23 março 2008

Só abandono



Dói-me o que nos resta no fim de uma noite
corpos gelados como se estivessemos ausentes

dói-me esta distância que entre nós se construiu
recordar o passado que guardas em ti
e te consome
perder gestos e palavras a cada momento

ficamos depois assim só abandono
ver as horas passar nos teus olhos
silenciar este rumor que me povoa o peito
encontrar uma voz frágil um esquecimento
que nos possa salvar

21 março 2008

Não me fujas

Porque é que teimas em esconder o que há em ti? Como se não confiasses em mim, como se tudo fosse desmasiado terrível? Sabes bem que não é. Sabes que não há o que me faça desistir. Nada nem ninguém, lembraste? Eu sei que me escondo, sei que me recuso a mostrar-te tanta coisa, tanto que te poderia mostrar se não tivesse um medo tão grande de te perder. Mas, por favor, não te tornes igual a mim. Não te deixes levar por esta escuridão tão funda e dolorosa. Senão quem me salvará? Quem me abraçará quando o mundo se vira contra nós, meu amor?

Como se a morte não bastasse

Não mais que abandono

sabeis o meu destino: não prolongueis, por isso,
mais que as palavras e as demoras. abandonai-me
nas longínquas pedras junto da água e deixai-me
morrer profundamente como se a morte não bastasse.

nao há enganos: por mim é outro que do aroma do
mar colhe a pequena imagem que por outro se repete
como se não bastasse uma vez adormecer no eclipse
mas tudo ao abandono nos condenasse, para sempre.

sabeis o meu destino e sabeis que ele não se perde
em mim mas em outro que por mim morre lentamente,
como se a morte não bastasse. é nesse outro que vivo

e nesse outro perco-me a mim mesmo enquanto peixes
e cores do inverno invadem a casa, perdidamente, para
poder encontrar abandono, não mais que abandono.

Francisco José Viegas, Todas as Coisas

20 março 2008

Solidão silenciosa




Mantenho esta dolorosa distância
por não ter maneira de lhe fugir
como se fosse neblina dentro do corpo
um silêncio resignado

temo o amanhecer os desenganos
a morte
uma lágrima na tua voz

temo arrastar-te para a solidão que há em mim


Fotografia de Renato Brandão

19 março 2008

Vi-te acordar




Vi-te acordar. Olhos fechados, gestos lentos, voz entorpecida. Vi-te acordar e fui feliz, tão absurdamente feliz, por poder estar em silêncio a teu lado, muda de deslumbramento, perdida num momento tão simples e tão perfeito. Ainda agora, tempo passado, não sei ao certo o que senti, não sei como foi possível tudo aquilo, uma noite, uma vida inteira nos teus braços.
Só sei que aconteceu. E não podia ter sido de outra forma.

Fotografia de Eric Alan Pritchard

Dedicado a S.

Sombras

1.
a ti recordo a todas as horas do tempo,
e isso é a alegria única, a que não morre nem aguarda,
e por ela escondo as luzes da cidade, e entendo que existe
um movimento permanente sob o céu,

reconheço o nome das espécies, invento aquilo que há-de vir,
aquilo que te ofereço, o que se encontra nu sobre a noite,
inclino-me sobre os teus passos a todas as horas do tempo,
confio nos calendários que se aproximam,
espalho faróis sobre os mapas.

se me afasto de ti, deixo-te o coração,
levo o teu em troca.

2.
se me afasto de ti, deixo-te o coração,
levo o teu em troca, nele respiro, ardo como um nome frio,
junto às vozes da rua uma passagem ilumina as tardes
com um perfume novo; o movimento dos barcos
habita o mar, desenhos do paraíso vivem disso, e do céu,

e de um corpo que tem saudades do corpo que lhe é mais seu.
tenho sonhos. um no outro descobrimos dias sem infinito.
o aroma permanece nas salas depois do amor,
sigo-o como à luz do mar, a tua voz está sempre próxima;
inverno a inverno, quando vierem, nos acolhem
docemente, só o milagre de um dia haver um jardim como este.

3.
este é o jardim em imagens perfeitas, comigo repleto do que nasceu
entre nós. o prazer de uma mesa onde crescem o pão,
as moedas, a alegria, o não ter senão dois nomes para o tempo:
o teu e aquele que há-de vir.

e outras coisas ainda: a primeira claridade da noite, rasgando-a,
e o vento que chega do deserto, a chuva nos campos,
os caminhos mais longos.

4.
um dia teria de haver um jardim como este,
nele crescerá a hera aguardando o inverno,
haverá um lugar nele, as crianças brincam e aguardam também,
como ambos sabemos.
será assim o registo desse lugar, e assim o diremos como geógrafos:
a parte das estrelas, o telhado da casa, os morangos,
a copa das árvores, a mesa, a roupa, as vozes no crepúsculo,
os degraus, a sombra, a varanda, a sede, setembro,
a água da chuva, o lado de fora de um fruto,
o lado de dentro de um fruto, o perfume do teu lenço,
as folhas de outono no jardim, as abelhas, o silêncio
no cume de um monte, a inocência, o verão,
o azul, o azul infinito, as veredas do bosque,
a caligrafia dos teus recados, as árvores reconhecidas,
os desenhos de um barco nas ilhas do sul,
uma viagem aos trópicos, as fotografias mais antigas,
a neblina, os anjos, o teu nome junto de um farol.

5.
a quem darei todos os dias da minha vida? a voz que levo
em mim impressa como o rumor dos jardins, os rebanhos
descem pelas encostas, a neve abandona as giestas,
uma banda de província comemora o entardecer. tu e eu dançaremos
como antigamente o verão nos chamava, pelas romarias,
e passaremos as noites em viagem. reinventei o mundo agora,
tu o fizeste assim, uma única vez se diz o nome que nos fez
voar sobre as searas. a quem darei a minha vida?
aquilo que deixámos um no outro marcado como um fogo,
o sobressalto, as novas palavras. o tempo demora, e volve, devagar,
sobre si mesmo, nos pátios mais antigos. do primeiro ao último dia,
a quem darei todos os dias da minha vida?

6.
nome amado, o teu, como o aroma mais perfeito
de todo o tempo.
há um declive verde nas colinas, a sombra emudece,
a névoa separa as margens de um rio,
a neve poisa entre os carvalhos, o linho adormece na terra,
a música prepara o seu regresso, suspensa na noite
entre os seus temores.
nome amado, o teu, nome demorado na minha vida,
nome que não esquece onde eu preparo o nome de ambos

como as razões antes das tempestades,
entre os dedos crescem as florestas, iluminam-se
as águas, o rosto de um corpo junto de outro corpo.

Francisco José Viegas, O Medo do Inverno

Falta-nos tempo

Falta-nos tempo
para olhares desmedidos
palavras ternas em manhãs geladas
um toque que nos redimisse de toda a dor

falta-nos a inocência e o silêncio
longas noites de esquecimento
abandonando a solidão que nos consumiu por um beijo
como agora sentir o teu coração a bater junto ao meu na penumbra
ter-te nos meus braços horas sem fim
preencheres este vazio que queima dentro de mim com o teu sorriso

desejar não morrer nunca

falta-nos tempo para o futuro
e para o presente deste amor
um sonho que mal sabemos como sonhar

18 março 2008

A escuridão em mim

Guardo segredos. Guardo em mim tudo o que sinto que te poderá levar para longe. Todos os erros. Todas as dúvidas. Guardo-os em mim até não aguentar mais. E explodir. Faço-o porque tenho medo. Um medo horrível, que me consome por dentro, de te perder. Como agora tenho medo dessa paixão adormecida que ainda vive dentro de ti.
Salva-me dos meus medos. Salva-me de mim mesma, por favor.

17 março 2008

O porquê de aqui estar, o porquê de viver...

Era chegado o momento de anotar meticulosamente todos os sons, as conversas que ouvia no silêncio da casa; criar um diário deste amor insone, registar os seus medos e esperanças, os seus rituais, avançar em ti como agora me descubro a mim. Por isso prefiro não to dizer enquanto te encaro, por tudo o que te entrego sem confessar.
Talvez venhas a encontrar estas palavras e nelas ver tudo o não te mostro. Por agora são como que secretas, apenas suspeitas.
Ainda me falta a coragem para tas dar, meu amor.

Inspirações



se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha que nos sinaliza a vida


sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor


depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo


mas se a juventude viesse novemente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição

Al Berto, O Medo