19 março 2008

Dedicado a S.

Sombras

1.
a ti recordo a todas as horas do tempo,
e isso é a alegria única, a que não morre nem aguarda,
e por ela escondo as luzes da cidade, e entendo que existe
um movimento permanente sob o céu,

reconheço o nome das espécies, invento aquilo que há-de vir,
aquilo que te ofereço, o que se encontra nu sobre a noite,
inclino-me sobre os teus passos a todas as horas do tempo,
confio nos calendários que se aproximam,
espalho faróis sobre os mapas.

se me afasto de ti, deixo-te o coração,
levo o teu em troca.

2.
se me afasto de ti, deixo-te o coração,
levo o teu em troca, nele respiro, ardo como um nome frio,
junto às vozes da rua uma passagem ilumina as tardes
com um perfume novo; o movimento dos barcos
habita o mar, desenhos do paraíso vivem disso, e do céu,

e de um corpo que tem saudades do corpo que lhe é mais seu.
tenho sonhos. um no outro descobrimos dias sem infinito.
o aroma permanece nas salas depois do amor,
sigo-o como à luz do mar, a tua voz está sempre próxima;
inverno a inverno, quando vierem, nos acolhem
docemente, só o milagre de um dia haver um jardim como este.

3.
este é o jardim em imagens perfeitas, comigo repleto do que nasceu
entre nós. o prazer de uma mesa onde crescem o pão,
as moedas, a alegria, o não ter senão dois nomes para o tempo:
o teu e aquele que há-de vir.

e outras coisas ainda: a primeira claridade da noite, rasgando-a,
e o vento que chega do deserto, a chuva nos campos,
os caminhos mais longos.

4.
um dia teria de haver um jardim como este,
nele crescerá a hera aguardando o inverno,
haverá um lugar nele, as crianças brincam e aguardam também,
como ambos sabemos.
será assim o registo desse lugar, e assim o diremos como geógrafos:
a parte das estrelas, o telhado da casa, os morangos,
a copa das árvores, a mesa, a roupa, as vozes no crepúsculo,
os degraus, a sombra, a varanda, a sede, setembro,
a água da chuva, o lado de fora de um fruto,
o lado de dentro de um fruto, o perfume do teu lenço,
as folhas de outono no jardim, as abelhas, o silêncio
no cume de um monte, a inocência, o verão,
o azul, o azul infinito, as veredas do bosque,
a caligrafia dos teus recados, as árvores reconhecidas,
os desenhos de um barco nas ilhas do sul,
uma viagem aos trópicos, as fotografias mais antigas,
a neblina, os anjos, o teu nome junto de um farol.

5.
a quem darei todos os dias da minha vida? a voz que levo
em mim impressa como o rumor dos jardins, os rebanhos
descem pelas encostas, a neve abandona as giestas,
uma banda de província comemora o entardecer. tu e eu dançaremos
como antigamente o verão nos chamava, pelas romarias,
e passaremos as noites em viagem. reinventei o mundo agora,
tu o fizeste assim, uma única vez se diz o nome que nos fez
voar sobre as searas. a quem darei a minha vida?
aquilo que deixámos um no outro marcado como um fogo,
o sobressalto, as novas palavras. o tempo demora, e volve, devagar,
sobre si mesmo, nos pátios mais antigos. do primeiro ao último dia,
a quem darei todos os dias da minha vida?

6.
nome amado, o teu, como o aroma mais perfeito
de todo o tempo.
há um declive verde nas colinas, a sombra emudece,
a névoa separa as margens de um rio,
a neve poisa entre os carvalhos, o linho adormece na terra,
a música prepara o seu regresso, suspensa na noite
entre os seus temores.
nome amado, o teu, nome demorado na minha vida,
nome que não esquece onde eu preparo o nome de ambos

como as razões antes das tempestades,
entre os dedos crescem as florestas, iluminam-se
as águas, o rosto de um corpo junto de outro corpo.

Francisco José Viegas, O Medo do Inverno

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